António Lacerda da Costa

21/06/2017

Há acontecimentos que tornam as nossas “guerrinhas ” do dia a dia totalmente sem sentido, como foi o caso desta grande tragédia de Pedrógão, que a todos afectou.
E, quando falamos dos valores do rugby, eles ficam bem expressos no texto de que tive conhecimento, e que tomei a liberdade de transcrever, do Luís Sommer Ribeiro, sobre a perda de uma criança de seis anos, sub-8 do Belenenses, o António Lacerda da Costa, que, tal como nós, não conhecia, que faleceu nesse acidente.
Aproveitamos para, em nome do Técnico Rugby, enviar as nossas mais sentidas condolências a toda a família do rugby do Belenenses, e também ao Gustavo, antigo jogador do Técnico que acabei de saber ser também membro da família enlutada.

Pedro Lucas

Ao António

António,

Tu não me conheces. Ou melhor, nós não nos chegámos a conhecer a sério, embora, certamente nos tenhamos cruzado mais de mil vezes. Quero acreditar que estavas no último jogo dos sub 8 do Belenenses em que participei, com o Técnico. Foi um jogaço! Daqueles mesmo divertidos, cheio de ensaios e placagens.
Mas se não jogaste esse jogaste, jogaste outros, com certeza, com o meu segundo filho mais velho, que tem a tua idade e joga no CDUL.
Queria agradecer-te por seres jogador de rugby. Não deve ser fácil escolher este desporto aos 6. Com essa idade ter o carácter e a coragem de enfrentar um desporto pouco visto, pouco conhecido, nada reconhecido, onde a dor é uma constante, porque faz parte ser atirado ao chão. Às vezes com força…
Vou contar-te um segredo, acho que nunca disse isto a outra pessoa. Eu tinha pânico de jogar… Medo a sério! Não sei se era medo de me magoar, medo de errar, mas tinha medo!
Enquanto via a malta da minha equipa animada antes dos jogos, eu não tinha sequer força para falar. Tinha de me concentrar ao máximo para o meu corpo vencer a minha cabeça e obrigar-me, a cada treino, a cada jogo, a entrar dentro de campo, a colocar o corpo na linha de combate. Mas ia. Nunca deixei de ir. E era por isso que este nosso desporto era tão especial.
Eu tinha de olhar para os jogadores das outras equipas, como tu, e forçar-me a ver-vos como humanos, é que nunca me pareciam. Quem tem coragem para fazer o que tu fazias com 6 anos, é um super-herói. E eu… Eu sou só eu…
O Titis, o tal que jogava contra ti, é muito parecido comigo. Um coraçãozinho de pardalinho que o faz ser de lágrima fácil, que ele protege com timidez. Olha as pessoas que não conhece, de baixo para cima, com o queixo colado ao peito de modo a esconder a cara.
É um tipo obstinado, como eu, é capaz de ficar uma hora a fazer o mesmo movimento até sentir que está certo. Certo não, perfeito.
No rugby parece ser destemido. Placa muito bem e corre com a bola. Vê-se que é adrenalina porque quando ninguém está a olhar ele põe-se aos saltos no lugar, não aguentando a energia que o percorre nos vossos jogos.
Ias gostar de o conhecer…
Por esta altura já conheceste o Lomu, meu herói de sempre, e já deves ter percebido o código. É que um jogador de rugby é só isso. Há várias equipas, jogadores melhores e piores, mas no fim do dia somos todos o mesmo, jogadores de rugby. Como uma família! Tens uma família espalhada pelo mundo.
Esta família hoje acordou mais triste, por saber que já cá não estás.
Por não te poder ver crescer como jogador e, assim, formares-te como Homem, ou apenas a crescer, vendo que o rugby não é para ti e seguires por outro lado. Imagino o Titis, tal como tu, tem tanto potencial, para tanta coisa, que é difícil imaginá-lo apenas a fazer uma ou não fazer nada, de todo…
Não sei se, não te conhecendo, tenho o direito de ficar tão triste, mas fico. Por isso, queria pedir-te desculpas. Desculpa mas eu não sei o que se passou. Sei que é suposto os adultos saberem tudo, mas eu sou dos que sabe muito pouco. Mal sei distinguir um sobreiro de uma azinheira como é que posso culpar os eucaliptos? Ou a tempestade? Ou a falta de não sei quê… ou o que for. Desculpa mas não sei justificar o que se passou. Não percebo suficientemente disto, nem de nada… Não sei quem culpar! Nem sei se é possível culpar alguém. Desculpa.
Sei que és do rugby e da idade do Titis, podiam ser amigos…
Sabes, quando não estou nos vossos torneios, ao fim de semana costumo correr. Corro em montanhas. Por isso, o sítio onde estavas de férias é mais ou menos por onde costumo andar em provas, ou a passar os fins de semana com a minha família. Como tu estavas…
Normalmente atravesso serras inteiras a correr. Há uma, em particular que adoro, a Freita. No ano passado ardeu. Doeu-me tanto, mas tanto, que não consegui ainda lá voltar. Parece que ardeu um bocado de mim, com a serra.
Daqui a três semanas vou estar numa prova, em Andorra. Vou tentar fazer, durante um fim de semana, cento e tal quilómetros, por aquelas montanhas enormes! Vou passar em rios e em neve. E vou pensar em ti… Sei que vou. Vou-me lembrar de ti. Vou dar-me ao direito de quando me estiverem a faltar as forças a subir à montanha mais alta, bem perto do céu, onde tu estás, e sentir aquele vento na cara que me dá a mão, achar que foste tu, que leste esta carta e te lembraste de mim.
No sítio para onde tu vais, tens uma vantagem enorme, toda a gente sabe que o rugby é o desporto que se joga no céu! És tu que vais ter de ensinar o que é a coragem aos que vão começar, pronto, o Lomu ajuda-te…

Abraço oval
Luís

P.S. – Vê lá se apanhas esta bola do Titis! Também gostavas de andar de trotinete?

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